Como podemos nos comunicar sem causar desconforto para pessoas que têm identidade de gênero e sexual diversas? Nesse texto, vamos discutir tudo o que você sempre quis saber sobre linguagem inclusiva, mas tinha vergonha de perguntar. Vamos falar sobre o uso de “@”, “x” e “-e”, para que(m) servem e qual a importância de desconstruir os preconceitos da nossa comunicação.
Texto elaborado por Priscila Cristina Zambrano e Vivian Avelino-Silva em 28 de novembro de 2022
Você já deve ter se deparado com pessoas que ficam desconfortáveis com uma linguagem que reconhece somente os gêneros feminino ou masculino, ou com textos que usam termos neutros que você não aprendeu na escola. Talvez você tenha ficado intimidado com essa novidade da língua portuguesa, ou talvez você tenha pensado que isso é uma maluquice. Mas é importante saber que, hoje, cada vez mais é importante acolher a diversidade na forma como nos comunicamos. A linguagem não binária, também conhecida como “linguagem neutra” ou “linguagem inclusiva”, propõe alternativas de uso da língua que evitam marcar os gêneros feminino ou masculino como se fossem os únicos a existir na nossa sociedade. Dessa maneira, trocam-se os artigos femininos e masculinos por “@”, “-x” e “-e”, com o objetivo de adaptar a língua, reconhecendo a existência de outras identidades. Assim, a comunicação consegue atender a “todes”, “todxs” e “tod@s”.
Isso não significa que queremos eliminaro masculino e o feminino da gramática, mas sim incluir pessoas que não se identificam com os gêneros e pronomes tradicionais. Essa forma de comunicação pode ser muito mais acolhedora, por exemplo, para pessoas transsexuais e pessoas não binárias, intersexo, ou simplesmente para situações em que o gênero não é relevante.
Por que tantos termos?
A discussão sobre esse tema ganhou maior força na última década em função dos direitos conquistados pela comunidade LGBTQIA+, que passou a ocupar mais espaços políticos e sociais e a reivindicar mais reconhecimento, inclusive na linguagem que usamos no dia-a-dia.
Existem várias terminologias para tratar sobre esse fenômeno – podemos encontrar “linguagem inclusiva”, “linguagem não binária”, “linguagem neutra” e até mesmo “linguagem não sexista”. Isso reflete o quanto esse assunto é relativamente novo e ainda está em debate.
De maneira geral, a linguagem não sexista ou linguagem inclusiva privilegia uma comunicação que não exclua e nem ignore a existência de ninguém. Para isso, podemos usar expressões genéricas ou termos coletivos, usar termos femininos nas sentenças e adotar expressões menos racistas, xenofóbicas, homofóbicas, capacitistas e preconceituosas de maneira geral. Veja aqui alguns exemplos:
●Presidenta; membra;
●“O pessoal docente/corpo docente” ao invés de “os professores”;
●“Inveja boa”, ao invés de “inveja branca”; “que roupa sem estilo!”, ao invés de “que roupa de baiano!”; “homossexualidade”, ao invés de “homossexualismo”; e “se fingir de desentendido”, ao invés de “fingir demência”.
Por sua vez, a linguagem não binária – também chamada de linguagem neutra – busca a inclusão de todas as pessoas, inclusive aquelas que fogem do binarismo de gênero. Diferentemente das propostas anteriores, as novas alternativas linguísticas alteram a grafia de algumas palavras ao utilizar “@”, “x” ou “-e”:
●Amig@s, amigxs ou amigues, ao invés de “amigos”;
Língua, sociedade e identidade(s)
Desde a origem das línguas é possível observar que tivemos grandes mudanças na forma como nos comunicamos. A linguística nos mostra (e vem mostrando cada vez mais) que a língua não é homogênea e deve ser entendida justamente pelo que caracteriza os seres humanos: a diversidade, a diferença, a possibilidade de mudanças. Essas transformações acontecem nas ruas, nas instituições públicas e privadas, nos discursos da classe política, de profissionais da saúde, na linguagem dos contextos religiosos e em muitas outras situações. Ocorrem tanto na fala quanto na escrita, inclusive através dos meios tecnológicos, como observado no que muitos chamam de “internetês”. Das poesias até os documentos propriamente ditos, tudo se modifica. As alterações podem acontecer naturalmente ou, ainda, ser determinadas por lei, mediante acordos, como é o caso do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (2014 [1990]).
A língua é um organismo vivo que inevitavelmente muda com o decorrer do tempo para atender às necessidades de quem a utiliza. Devemos sempre lembrar que não existe uma língua bonita ou feia, uma variante melhor ou pior que outra. Essas argumentações giram em torno de juízos de valores, muitas vezes irracionais, baseados em crenças que foram criadas e consolidadas socialmente.
Algumas formas da língua podem ser usadas, de maneira parcial, para determinar formas “certas” e “erradas” de falar e formas certas ou erradas de existir; quando uma identidade é reconhecida como a norma, isso implica em atribuir às demais identidades um status de marginalidade, de inferioridade e, certamente, de exclusão. A disputa de identidade(s) reflete, também, uma disputa político-social e ideológica (ZAMBRANO, 2022). Assim, a forma como nos expressamos não envolve um mero capricho linguístico, mas um julgamento social.
A linguagem não binária vem tomando espaço e causando incômodo ao questionar a relação entre aquilo que escrevemos e falamos e aquilo que, de fato, somos. Afinal, a humanidade é dinâmica, e a língua deve refletir a nossa identidade.
Identidade(s) de gênero e linguagem não binária
Muita gente acha que a linguagem não binária pode destruir a língua portuguesa; entretanto, a maioria desses argumentos tem como base preconceitos sociais (ZAMBRANO, 2022). Quando se nega ou ataca a linguagem não binária, ataca-se, na verdade, aqueles que a utilizam. Apaga-se sua existência. De acordo com Butler (1997), as palavras ferem; em uma sociedade intolerante, discursos como os de ódio podem legitimar violências simbólicas e convertê-las em violências físicas também.
O x da questão
Os vários xis da questão referentes ao uso da linguagem não binária não são, essencialmente, linguísticos. É claro que algumas escolhas de (não) marcação de gênero são inviáveis na fala (como o “@” e o “x”, por exemplo), sendo produtivas somente se consideradas no contexto da escrita. No entanto, novas alternativas surgem como solução para esses entraves (como o uso do “-e”).
Ao investigarmos a história de uma língua, devemos considerar os princípios e padrões do comportamento social. Se uma sociedade é preconceituosa, inevitavelmente as escolhas linguísticas refletirão essa discriminação, fazendo da língua, também, um espaço para opressão.
Linguagem não binária vs. Legislação
De acordo com o estabelecido pela norma padrão na língua portuguesa, o artigo masculino, cumpre perfeitamente o papel de pronome neutro no plural. Ainda que um espaço seja predominantemente composto pelo público feminino ou por indivíduos dissonantes da masculinidade, referirmos a esse grupo de pessoas por meio de “eles” e “todos” (p. ex.: bom dia a todos!) seria o suficiente. Como reflexo dessa norma, vestibulares, concursos e serviços públicos não permitem o uso da linguagem não binária, exigindo a utilização da norma culta da língua portuguesa em suas avaliações e documentos oficiais.
Em alguns estados, a proibição da linguagem não binária é explícita, e há projetos de lei que tramitam na Câmara dos Deputados buscando garantir a manutenção de uma linguagem binária e excludente. Veja aqui alguns exemplos:
Joinville/SC: lei 9.077/21, que veda expressamente a utilização de linguagem “estranha à Língua Portuguesa”, vedando “ao Poder Público do Município de Joinville, independentemente do nível de atuação, inovar para utilizar de formas de flexão de gênero das palavras da língua portuguesa, que contrariem as regras gramaticais consolidadas ou modifiquem o uso da norma culta da Língua Portuguesa e seu conjunto de padrões linguísticos adotados pelo Brasil.”.
Em trâmite: PL 5.248/20, que veda “o uso da “linguagem neutra”, do “dialeto não binário” ou de qualquer outra que descaracterize o uso da norma culta na grade curricular e no material didático de instituições de ensino públicas ou privadas, em documentos oficiais dos entes federados, em editais de concursos públicos, assim como em ações culturais, esportivas, sociais ou publicitárias que percebam verba pública de qualquer natureza.”.
Em outubro de 2021, o Secretário Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura, da Secretaria Especial de Cultura do Ministério do Turismo, publicou a portaria 604/21, que veda, nos projetos financiados pela Lei nº 8.313/91 (Lei Rouanet) “o uso e/ou utilização, direta ou indiretamente, além da apologia, do que se convencionou chamar de linguagem neutra.”.
Conclusão
Independentemente de quem você seja, onde more ou em que época da história você esteja inserido, não há como negar que pessoas diversas existem. Usar as normas tradicionais da língua pode parecer correto e intuitivo para algumas pessoas, mas certamente é uma forma de opressão para outras. A língua é uma tecnologia em constante evolução, e que deve ser útil e acolhedora para seus usuáries, usuárias e usuários.
REFERÊNCIAS
- Acordo ortográfico da língua portuguesa: atos internacionais e normas correlatas. – 2. ed. – Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2014 [1990]. 100 p. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/508145/000997415.pdf. Acesso em: 19 set. 2022
- BUTLER, J. Excitable Speech: A Politics of the Performative. Nova York:Routledge, 1997.
- LINGUAGEM neutra: Veja o que é e conheça as leis contra sua utilização. Migalhas, 14 de jan. 2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/357892/linguagem-neutra-veja-o-que-e-e-conheca-as-leis-contra-sua-utilizacao. Acesso em: 15 set. 2022.
- ZAMBRANO, P. C. Linguagem inclusiva em destaque: pesquisa, análise e divulgação dos xis da questão. 124 p. Trabalho de conclusão de curso (Graduação em Letras) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2022. Disponível em: https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/12624. Acesso em: 23 set. 2022.